segunda-feira, julho 04, 2005

Gil Vicente, beirão (4/4)

por Valentim da Silva
in "Beira Alta", volume III, fascículo II, 1944, 2º trimestre

3) Entremos agora na análise da terceira parte do artigo do artigo do sr. Dr. Costa Pimpão referente aos meios de percepção utilizados por Gil Vicente para conhecimento da província da Beira.

Diz êle, que Gil Vicente conhece a Beira, não por aí ter nascido ou vivido, mas simplesmente por via alheia.

Em Lisboa deveriam residir, muitos ratinhos (beirões) alguns armados em pagens, outros em criados que ao comediógrafo, facultariam os meios necessários para aquisição dos seus conhecfmentos sôbre a Beira.

É esta uma das fontes a que o sr. dr. Costa Pimpão, seguindo Oscar de Pratt, recorre, para a documentação de Gil Vicente.

Mesmo que tais parvónios fôssem tomados como tipos de estudo, eu creio que êles não poderiam fornecer tôda aquela soma de conhecimentos que a obra de Gil Vicente revela.

Como se pode admitir que uma obra de vulto, tam grande no detalhe, como grande na concepção das figuras, pudesse ser transmitida à laia de conversa e, demais, por pobres beócios?

Que largos conhecimentos êsses ratinhos não deveriam possuir para tam nítida e profundamente instruirem o autor do teatro português sôbre tantos e tam variados aspectos, como são os que por êle foram vincados em tôdas as suas comédias e autos?

Que grande saber os dêsses humildes serranos, ensinando a Gil Vicente a linguagem da sua província, os seus costumes, usos e as diferentes modalidades que constituem a sua etnografia; as suas trovas e cantares cheios do mais eternecido lirismo, os seus bailados que formam o folclore da Beira, a sua topografia disseminada pelos mais recônditos lugares, as suas indústrias caseiras, finalmente a profunda psicologia que ressalta das muitas e variadas figuras em que se decompõem o seu teatro.

Não tendo saído Gil Vicente, de Lisboa, como é que êle poude saborear o leite da Serra da Estrêla que o fez dizer:

Que tal leite como o meu
Não no ha em Portugal?
Que tenho tanto e tal,
E tão fino Deus m' o deu,
Que é manteiga, e não al..

Por certo que os meios de comunicação não permitiam que tal produto fosse transportado para aí a não ser que o almocreve Pero Vaz - o levasse na carga; mas em que estado lastimável êle não deveria lá chegar...

A hipótese pois de Gil Vicente se documentar pela forma aceita pelo sr. Dr. Costa Pimpão parece-nos, salvo o devido respeito, inadmíssivel à face da mais perfunctória crítica.

Só o contacto íntimo e permanente com uma região é que pode explicar o conhecimento de tantos elementos de tam variada natureza, como são aquêles de que lançou mão o fundador do teatro português.

A obra de Gil Vicente não aparenta um carácter fragmentário nem se afigura filho duma fugídia memória, mas antes é filtrada através dum estado de consciência intelectual que repele tqda a ideia de superficialidade.

Não pode, por iss0, ter sido colhida fóra do ambiente que a gerou, mas antes dentro dêle e só por quem nêle estivesse absolutamente integrado.

As razões expostas excluem em absoluto a preocupação de que Gil Vicente, através dos ratinhos pudesse ter feito o seu teatro.

Mas não é mais feliz a hipótese do comediógrafo ter dado as suas caminhadas pela Beira, a fim de colher impressões que o habilitassem à criação dos seus tipos montanhêses.

Já o ilustre director da Beira Alta impregnou duma graça cintilante tam bizarro pensamento.

Em primeiro lugar, é inadmissível que êle deixasse Lisboa só com o propósito de deambular pela Beira, calcorrreando os trilhos dos seus inhospitos caminhos, que foram apodados, três séculos mais tarde, pelos soldados de Napoleão de - caminhos dos diabos -. Depois, como era possível a um homem cuja actividade se desdobrava em muitas e variadas ocupações, abandoná-las para vir, ainda que, de fugida, palmilhar para cima das suas oitenta a noventa léguas!

Bastava isto, para fazer cair pela base tal suposição. Mas há mais e melhor: Gil Vicente era ourives lavrante da raínha D. Leonor, como se vê do alvará de D. Manuel, de 15 de Fevereiro de 1509 em que o nomeia ao mesmo tempo oficial e vedor, de tôdas as obras de oiro e prata mandadas fazer para o convento de Tomar, Hospital de Todos os Santos de Lisboa e Mosteiro de Belém.

Antes dessa nomeação, o mesmo rei o tinha incumbido do fabrico dessa maravilhosa obra de arte que é a Custódia de Belem e na qual se calcula ter gasto três anos.

Em 4 de Fevereiro de 1513 é Gil Vicente nomeado mestre da balança, da casa da moeda, ocupação que lhe roubaria de certo muito tempo.

Por sua vez slabe-se que êle fazia parte da corporação de Artes e Oficios pois, como seu procurador, assina em 17 de Outubro de 1513, um contracto realizado entre a Câmara Municipal de Lisboa e o barão do Alvito. Em 6 de Março de 1516 ordena D. Manuel à Câmara de Lisboa, que ouça Gil Vicente sôbre uns apontamentos que tocadores e alfaiates lhe fizeram chegar às mãos, por intermédio do mesmo Gil Vicente. Em 29 de Novembro de 1520 comunica o mesmo rei, que se achava em Évora, à mesma Câmara de Lisboa que Gil Vicente seguia para aí a fim de, por sua ordem. se prepararem as festas destinadas à recepção da rainha D. Leonor.

Ainda sôbre o mesmo objecto nos diz Queiroz Veloso {obra cit.} que outra carta régia foi expedida em 10 de Dezembro do mesmo ano conteudo era o seguinte «ssobre o que tendes pasado com Gill Vycemte, e as pimturas que vos mostrou e as cousas e cadafalsos que vos dise que saão necesareos.»

Em vários diplomas concede-lhe D. João III benefícios dalgumas tensas e, a 19 de Janeiro 1525, expressamente se refere aos serviços que Gil Vicente lhe prestou e que espera continuar a receber dêle.

A par dêste intenso labor, escrevia a sua obra literária que à côrte ia representando, nas diferentes vilas e cidades, onde por causa da peste, a mesma estacionava.

Será preciso dizer mais para pôr em relêvo a impossibilidade em que Gil Vicente se encontrava de dar as suas passeatas pela Beira?

Creio que insistir será redundância da minha parte.

Falta, para completa análise da argumentação do sr. Dr. Costa Pimpão, referirmo-nos ao caso de Moliére fazer falar os seus rurais sem, contudo, ter ido à Suiça.

O sr. Dr. Costa Pimpão esquece-se de que não é só a linguagem que dá à obra de Gil Vicente um caracter de unidade regional. A linguagem é indiscutivelmente um factor de importância, mas não é só por ela que se caracteriza como beirã a obra vicentista.

Sôbre a linguagem usada por Molière e assim sôbre os diferentes patois com que enche o seu teatro, muito se me oferecia dizer.

A êste respeito, sem preocupações de erudição fácil, limitar-me-ei a citar Lanson, a pág. .516, da sua História da Literatura Francêsa.

E aqui terminamos a análise do artigo do ilustre Professor da Universidade de Coimbra, faltando-nos apenas falar do local do nascimento de Gil Vicente o que em seguida vamos fazer.

* * *

Sendo Gil Vicente da Beira e donde seria também a mãe, como deixa ver o sr. dr. Queiroz Veloso, na obra cit., pág. 23, em que lugar desta província teria vindo ao mundo? Eis a questão.

É preciso frisar que o comediógrafo ocultou sempre o local do seu nascimento, assim como a origem humilde dos seus progenitores.

Fazendo-se, no Auto da Lusitânia, oriundo da Paderneira e descendente de gente de baixa condição, êle não teve outro propósito em vista senão, como já notei no meu estudo, acentuar um estado de alma de depressiva tristeza e amargura por se ver deprimido num meio que êle defrontava, sem pergaminhos.

Fê-lo com ironia, que é um dos traços característicos do seu génio.

o local do seu nascimento deveria ter sido, pois, em lugarejo obscuro, perdido na encosta dalgum alteroso monte, fronteiro à Serra da Estrêla. Êsse lugarejo e seus arredores ficaram-lhe fatalmente gravados na memória, como lhe ficaram hábitos e costumes do meio que o cercava.

Eu expliquei sem necessidade de agora repetir, a acção do ambiente sôbre o indivíduo e assim a influência que êle exerce na sua formação psíquica.

Por esta razão, na memória do comediógrafo ficaram nitidamente gravados lugares, caminhos, encostas e vales por onde na sua infância andou e brincou, assim como linguagem, costumes e hábitos da gente que com êle conviveu.

Nesta ordem de ideias, pergunta-se quais os lugares da Beira que Gil Vicente revela conhecer nos mais minuciosos detalhes?

Creio não se poder pôr em dúvida serem os da circunscrição administrativa de Chãs de Tavares. Julgo necessário sôbre êste ponto reproduzir o que disse no meu estudo:

«Apontar cidades, vilas e mesmo aldeias está dentro dum lógico e compreensível conhecimento da corografia do país, mas ir mais longe, isto é, descer até à minúcia de montes e vales, ora perdidos entre acidentados caminhos, ora ocultos na sombra de ignorados outeiros, não é indubitàvelmente pôr em nítido relêvo a ideia duma prolongada permanência em todos êsses lugares?»

Temos de aceitar, sem mais delongas, a ideia de Gil Vicente ter nascido na freguesia de Chãs de Tavares.

Acrescente-se a tudo isto o facto desta freguesia ser caracterizada, desde os mais remotos tempos, por um intenso labor pecuário.

Mas dentro da sua área em que lugar se daria o nascimento do fundador do teatro português?

Inclinei-me, sem querer ocultar a dificuldade da resposta, pois assim me impõe a lealdade com que estou discutindo, para a povoação de Guimarães, e isto por uma série de razões que resumidamente passo a expôr.

1) o equívoco que se poderia ter dado no espírito do linhagista D. António de Lima que a Guimarães do Minho atribue a naturalidade de Gil Vicente; 2) ao facto de alguns escritores tomarem Guimarães - da Beira como sua naturalidade; 3) ao facto de Gil Vicente em tôda a sua obra não fazer a mínima referência àquela cidade minhota ; 4) ao facto de querer amesquinhar a sua naturalidade, dizendo-se da Paderneira, o que decerto não faria se tivesse nascido em Guimarães do Minho; 5) o nascimento nesta cidade seria para êle motivo dum natural e justo orgulho, atento os gloriosos títulos que a História lhe tem conferido; 6) o nenhum conhecimento que êle mostra ter da vida minhota, pois a ela não faz alusão.

Esta série de considerações dão à hipótese de Guimarães de Tavares um maior ou menor grau de probabilidades, desde que se ponha de parte a afirmativa do linhagista D. António de Lima.

Que são os nobiliários senão, por vezes, um amontoado de inexactidões que uma ligeira análise lança por terra?

Não obedeceria o filho do alcaide-mor de Guimarães a preocupações de ordem bairrista? Pois não vemos nós, no século XVII, Fr. Pedra de Poiares, no seu Tratado panegyrico em louvor de Barcelos, afirmar que o comediógrafo era daí? Bramcamp Freire, apesar de pôr em relêvo a afirmação do genealogista de Guimarães, não se inclina para a sua naturalidade beiroa e quási a perfilha, à face da linguagem que êle emprega e ainda da didascália do Auto
da Fama?

Tudo se conspira contra a informação de D. António de Lima.

O sr. Dr. Costa Pimpão considera absurda a naturalidade de Guimarães de Tavares. Creio que não se pode, duma forma tam peremptória dar tal classificação à nossa hipótese, visto o número de probabilidades que militam a seu favor.

Que a naturalidade de Gil Vicente pertence à freguesia das Chãs de Tavares não admite, no meu entender, dúvida alguma.

A confusão entre os dois homónimos, isto é, entre Guimarães do Minho e Guimarães da Beira, favorece a ideia de nesta povoação. se ter dado o nascimento de Gil Vicente.

O que é interessante é que o sr. Dr. Costa Pimpão anatematize de absurda a hipótese de Guimarães de Tavares e não o faça com o mesmo vigor quando em nota se refere a Guimarães de Tôrres Vedras.

O sr. dr. Queiroz Veloso demonstra (obra cit.) que o dramaturgo não possuia quinta alguma em Guimarães de Tôrres Vedras e assim nenhumas probabilidades podem ser invocadas em defesa da Estremadura.

Estão três Guimarães em causa: uma no Minho, outra na Estremadura e a última na Beira.

Pergunta-se qual das três regiões espelha e reflete, traduz e simboliza a obra de Gil Vicente?

Um dia virá que o ilustre Professor da Universidade de Coimbra despido de dúvidas e assim firme nos seus juizos, abrace a tese que defendemos.

Nêsse dia, a Beira contará um alto valor intelectual em defesa dos seus pergaminhos.

É certo que o ilustre autor do magnífico estudo sôbre Fialho de Almeida, e que há tempos ouvi ler com tanto interêsse, se encontra já num estado de alma muito apreciável, que é o da dúvida.

Foi pela dúvida que Descartes chegou à certeza, é pela dúvida que o ilustre Professor de Coimbra, ganhará a inabalável convicção de que Gil Vicente era beirão.

Até lá continuarei a afirmar:

- Creio que a Beira, por tudo que deixámos dito, tem justificado direito de esculpir no friso dos seus varões ilustres a figura dêste homem de gênio.

VALENTIM DA SILVA

domingo, julho 03, 2005

Gil Vicente, beirão (3/4)

por Valentim da Silva
in "Beira Alta", volume III, fascículo II, 1944, 2º trimestre

Passaremos agora a analisar os argumentos com que o sr. Dr. Costa Pimpão pretende exemplificar a nenhuma simpatia de Gil Vicente pela Beira.

Para êsse fim recorre às duas farsas - Juiz e Clérigo da Beira - onde no seu entender, é ridicularisada esta Província.

O que pretendeu Gil Vicente no Juiz da Beira?

Não foi de certo deprimi-la, mas sim, à organização judiciária dessa época, simbolisada na pitoresca figura dum juiz ordinário, sem contudo lhe diminuir a força do seu caracter e assim a coragem forte e sincera de que é dotada a gente da Beira.

A análise desta interessantíssima figura e assim o objectivo que Gil Vicente teve em vista com a sua criação foi com mestria descrita pelo ilustre director da Beira Alta, sr. dr. Lucena e Vale. Vamos transcrevê-Ia da brilhante conferencia realizada em Lisboa na Casa das Beiras, e cujo titulo é: "Beira Alta, Solar da R.aça".

Ouçamos o que êle diz e que como resposta oferecemos ao sr. Dr. Costa Pimpão;

"Dentre tantas figuras beiroas, que, desde Viriato ao Malhadinhas de Aquilino R.ibeiro, esmaltam as páginas da história e literatura nacionais, agora mesmo me acode uma, nêste ponto bem típica, que criou há mais de quatrocentos anos, um dos maiores gênios das letras portuguêsas. Todos a conhecemos: é o Pero Marques da farça vicentina, aquêle Juiz da Beira que, acusado de não saber ler a Ordenação e de sentenciar sem critério, Gil Vicente emprazara em nome de D. Joio III a fazer, em Lisboa, uma audiência na Côrte.
Homem da serra, com o seu julgado lá para as bandas de Viseu, Pero Marques é, como todo o serrano, rude de maneiras e de língua, mas esperto, ao menos espertalhão, tipo de ôlho aberto, com o seu quê de velhacaria bem intencionada, inofensiva, como o revela a sentença proferida naquela causa em que quatro irmãos irreconciliáveis pretendem, cada um para si, o jumento que haviam herdado do pai.


O juiz ouve-os pacientemente, àemoradamente. E não podendo - é obvio - partir o burro às postas nem deixar o pleito sem despacho, assim se livra maliciosamente do apêrto:

Julgo por minha setença
Que o asno seja citado
Para a primeira audiência.

Com ser homem rude, habituado aos alcantis da Beira, Pero Marques não deixa de ser homem desembaraçado, sem papas na língua. .
Nem desta feita o empeceram as galas e tafularias da côrte de D. João III.


Longe de se intimidar com elas, antes encarando sem enleio os circunstantes, logo desassombradamente se.confessa tal qual é:


Homem de boa ventura
Empacho nunca m' atura
E hei-de dizer o meu
Como «tuaIquer criatura.

E adiante, perante aquêle espadachim brigão, gabarola, implicativo, Pero Marques não se contém. E quando, em seu atrevimento, o homem chega ao desafôro de ameaçar:

O asno, Juiz, me dae.
E senão...

Pero Marques ergue-se, avança, e explode:

... Como se não?...

E logo o brigão, manso perante os pulsos cabeludos do rijo juiz da Beira:

Se não, não sei que vos diga.

E Pero Marques:
Cuidei que isso era briga. . .
Não sejais sandivarrão
Qu' eu tambem não sou formiga,
Tende vós em vós aviso,
Ou darei tantas em vós
Que vos faça ter mais siso.

É manifesto que Gil Vicente, ao dar-nos um tal Pero Marques, não pretendeu caricaturar apenas o juiz rústico e labrego das comarcas sertanejas do Portugal de quinhentos; quis também. uma vez que o juiz era das bandas de Viseu, dar-nos algumas das feições mais acentuadas do homem da Beira: o seu ânimo franco e desembaraçado que o leva a dizer o que pensa sem rebuço nem empachos, e o génio alevantado. assomadiço que acode a castigar sem demora embófias de fanfarrão. E acertou, confessemos. Num defeito? Numa virtude?
Talvez numa e outra coisa afinal, porque se através dos tempos esta rópia de tesuras esmocou muita cabeça por feiras e arraiais, também obrou maravilhas em muitos lances da história
."

Êste tipo de juiz sagaz mas ao mesmo tempo inteiriço no cumprimento da sua missão ainda no século XVIII ou principios do século XIX o encontramos encarnado naquêle célebre juiz de Barrelas que tam típico se tornou pela bizarra forma da sua sentença.

Como o sr. Dr. Costa Pimpão vê não há desprimores para a Beira mas apenas afirmação de qualidades que apesar de rudes, não deixam de ser honrosas.

Por sua vez, o Clérigo da Beira nada tem de magoante também para esta província. A crítica literária tem-o sempre olhado como uma charge a Sá de Miranda, inimigo de Gil Vicente e, como talo exprimi no meu estudo.

O furto da lebre e dos capões - note-se - não é feito por gente da província da Beira, mas sim, por moços do Paço.

Onde está, pois, o propósito de a deprimir nas duas farsas - Juiz e Clérigo da Beira?

A sua análise não comporta, de forma alguma tais conclusões. Mas há mais factos apontados no sentido de tornar risível a província da Beira?

Referindo-se ao Triunfo do Inverno cita os seguintes versos:

Que mas cousa sam vilãos
e a gente popular,
que nam sabem desejar

senam hus desejos vãos,
que nam sam terra nem mar.
De nenum bem dizem bem,
nem o sabem conhecer
mormuram sem entender
e ainda o peor que tem,
que seu dano he seu prazer.

O traço psicológico dos vilãos, descrito nestes versos, é incontestávelmente duma grande realidade e traduz não o desejo de ocultar defeitos comuns a tôda a natureza humana, mas apenas pintar o caracter da gente popular.

É a tôda a província da Beira que Gil Vicente se refere? Evidentemente que não. As suas censuras não vão para tôdas as classes constituitivas da sociedade de então, mas apenas para os vilãos, gente popular com a qual êle esteve em intimo contacto e que, por isso, desde a infância melhor observou.

Ainda hoje o fundo moral das classes inferiores da nossa província, se enraíza nos mesmos depressivos sentimentos que Gil Vicente lhes notou.

Dizer isto é set magoante para a Beira?

Creio que a conclusão afirmativa nos levaria a um êrro de lógica que seria o de tomar a parte pelo todo.

A beira no século XVI não era já só constituida por vilãos mas sim por outras classes que o condicionalismo social formara dentro duma elaboração lenta mas progressiva.

No Auto da Feira destaca o ilustre Professor o facto de nove moças dos montes não quererem comprar virtudes, porque não dão motivo a um bom casamento.

Creio que nada há de mais positivo. A santidade é, na verdade, um estado de alma muito apreciável mas, só por si, não satisfaz à realidade objectiva da vida e foi isto que Gil Vicente quiz significar pelo conhecimento que tinha do caracter prático do beirão.

A religiosidade da gente da serra surgiu sempre através duma materialidade grosseira, pois a sua primária cerebração não comporta concepções de ordem abstrata; Não se pode, pois, inferir da resposta que as nove moças dão ao Serafim do Auto da Feira, desprimor para os naturais desta província, mesmo sob o ponto de vista religioso.

Parece que o sr. Dt. Costa Pimpão pretende tirar partido dos amores loucos e dos casamentos a furto, sem consentimento paterno e sem benção da Igreja. . .

Apontando factos desta natureza, Gil Vicente pretendeu amesquinhar os seus co-naturais? Podem eles traduzir outra coisa que não sejam fenómenos duma amorosa sensibilidade ? A amorosidade foi alguma vez um defeito ou não será antes uma rácica qualidade que está dentro dos preceitos da própria Bíblia? E os casamentos, feitos por meio de formas simples sem intervenção sacerdotal, não estavam dentro da ingénua simplicidade da nossa provincia ?

Trazendo para a cena essas singelas uniões, quiz Gil Vicente amesquinhar o caracter religioso dos beirões? Concluir pela afirmativa não será apreciar um facto histórico por um critério diferente da sua época?

Na Beira era muito comum na Idade Média esta forma de constituir família, forma sancionada pelo próprio direito consuetudinário e a que largamente se refere no seu Elucidario Santa Rosa de Viterbo (pag. 80), quando descreve aquelas formas de casamento apelidadas de maridança.

O que era um marido conuçudo ? Por que séculos tais costumes se prolongaram? D. Manuel não os pretendeu evitar com a sua lei de 14 de Julho de 1499 que se acha encorporada na sua Ordenação de 1514 ?

Tão arreigados estavam nos costumes portuguêses estes casamentos sem intervenção sacerdotal que apesar de mais tarde serem proibidos pelo Concílio Tridentino, ainda no século XVII, D. João IV pela sua lei de 13 de Novembro de 1651 se viu obrigado a determinar que «podiam ser desherdados os filhos que contraíssem matrimónios clandestinos

E são estas bagatelas que o ilustre Professor nos oferece para demonstrar a pouca ou nenhuma simpatia que o autor do teatro português tinha para com os seus co-naturais...

Pelo contrário, Gil V icente, trazendo-os para o seu teatro, não os fez nem melhores nem piores do que êles são. Não os deformou, criando-lhes defeitos ou vícios que lhe fizessem perder aquela natural simpatia que inspira sempre a rude gente das montanhas.

O cómico ou pitoresco com que os pinta ou mesmo a solerte malícia dos seus intentos não lhes diminue a sinceridade da sua rudeza nem lhes apaga a ingénua simplicidade dos seus sentimentos.

Gil Vicente transplantou-os para a cena tal como os conhecera e observou durante o tempo que com êles conviveu, por certo bastante, visto ter já perto de 40 anos, quando pela primeira vez se apresentou na Côrte a representar o Auto da Visitação ou Monólogo do Vaqueiro.

O que direi dos seus tipos femininos, por via de regra, tam cheios de graça e frescura, não só pela ingenuidade dos seus dizeres, como pelo lirismo das suas encantadoras serranilhas?

Ponho de parte muitas citações que neste sentido se podiam colher para aqui apenas repetir um dos estribilhos da Farsa dos Almocreves:

A serra he alta fria e nevosa
Vi venir serrana gentil graciosa.

Resta-nos falar do Auto da Fama que, como demonstrei no meu estudo, é a prova mais eloqüente da simpatia que prendia Gil Vicente à Beira. Não repito por desnecessário o que então disse, mas sempre acrescentarei que a didascália dêste auto nos oferece uma prova irrecusável da naturalidade beirã de Gil Vicente.

Com efeito, falando da Beira, simbolizada numa mocinha, emprega a seguinte expressão - nossa província. A quem se refere o possessivo - nossa - ? Evidentemente que a Gil Vicente e assim também para esta interpretação se inclina Brancamp Freire.

Se êle não quizesse traduzir a ideia de que à Beira pertencia, desnecessário era empregar o possessivo - nossa.
Êste possessivo não deixa dúvidas sôbre as suas intenções.

Conclusão: o facto dum escritor ter nascido em certa e determinada região não lhe coarcta o direito de a criticar sem que com isso o seu caracter fique diminuido. Gil Vicente utilizando a Beira, como objectivo do seu teatro, não teve em vista depreciá-la; mesmo que o fizesse o determinismo do ambiente em que o seu espírito se formou não podia ser posto de parte na análise da sua obra.

Gil Vicente, beirão (2/4)

por Valentim da Silva
in "Beira Alta", volume III, fascículo II, 1944, 2º trimestre

Passaremos agora a análise da segunda parte do artigo.

Nêle há a considerar três pontos de vista.

1) a província da Beira não é na obra de Gil Vicente mais do que um elemento de arte;
2) nenhuma simpatia que o comediógrafo sentia por esta província;
3) meios de que se serviu para a aquisição dos seus conhecimentos àcerca da mesma província.

Vejamos cada um dêstes pontos em separado.

1) Diz o sr. Dr. Costa Pimpão que «adopção do pastoril português não pode limitar-se ao da inquirição da naturalidade de Gil Vicente nem nêste encontra a sua solução

Quem é que tal disse? Creio que no meu estudo não fiz nem poderia fazer, por absurda, a afirmação de que o gênero pastoril foi de espontânea criação de Gil Vicente. Se o dissesse, faria uma asserção gratuita contrária à evolução a que as literaturas de todos 0s países estão sujeitas sob o influxo da mais íntima interdependência social.

O que se afirma é que, sendo Gil Vicente natural da Beira, êle pôde, por êsse facto, melhor do que qualquer outro escritor, encarnar a corrente literária que a Renascença difundiu através de Sanazarro, pela França, Espanha e depois entre nós, se é que ela não vinha dum passado mais distante.

Tôdas as épocas literárias encontram no génio de alguns homen-s os seus máximos expoentes,

Se Gil Vicente não fôsse beirão, êIe nunca poderia dar ao seu teatro aquêle colorido e realismo provinciano.

Da Beira tirou êle a matéria plástica das suas criações e nunca o poderia ter feito com tanta evidência se fôsse um estranho a esta província.

Criou êle o estilo pastoril ou bucólico? Não. O que fez foi, guiado pelas suas altas qualidades de observador fundar o teatro português dentro dos moldes que a literatura da época lhe oferecia.

Caída a novela cavalheiresca com o fechar do siclo da Idade-Média, outras formas literárias surgiram em sua substituição que naturalmente se reflectiram, ainda que tarde, na literatura portuguêsa.

O berço beirão nunca foi por nós invocado como condição sine qua non para a admissão do pastoril português, mas, sim, o ambiente próprio para nêle melhor se objectivar êste genero de literatura.

Em conclusão: Gil Vícente não criou o que já estava criado nem ninguém tal afirmou, mas, sim, que as condições mesológicas que sôble o seu espírito actuaram o tornaram o melhor intérprete do pastoril português, que o seu génio alargou e desenvolveu. O rústico ambiente que lhe serviu de berço explica sem necessidade de outros meios a objectiva realidade da sua obra.

Não se façam confusões onde não há razões para elas. A Beira é para o sr. Dr. Costa Pimpão um elemento de arte. Absolutamente de acôrdo. A questão está em saber como Gil Vicente adquiriu êsse elemento e é ai que a nossa divergência começa.

Quere o sr. Dr. Costa Pimpão restringir o seu estudo a êsse elemento de arte e assim só colher a emoção estética que dêle advém?

Está isso fóra dos meus propósitos, pois as minhas investigações obedeceram a razões de ordem biográfica e não a razões de ordem emocional.

O elemento estético é decerto para a crítica científica duma singular importância, pois por êle se penetra mais profundamente na alma do artista e melhor se apreende tôda a sensivel beleza do seu génio criador, quer sob o ponto de vista emotivo, quer mesmo sob o seu ponto de vista formal.

Assim o pensa Guyau no seu livro "L'Art au point de vue sociologique", pág. 48, sem contudo pôr de parte as relações que prendem o artista ao meio em que o seu espírito se formou, e assim aquela série de princípios que condicionam a teoria Literária de Hipólito Taine.

Análise de uma obra de arte restrista ao elemento estético é incompleto pois só por si não consegue esclarecer todo aquêle conjunto de circunstâncias que levaram o escritor à realização da sua obra e que nêle actuaram, não só sob o ponto de vista psicológico, mas também sob o ponto de vista sociológico.

Se no estudo duma obra de arte puzermos de parte as determinantes que origináram a sua criação e nos limitarmos ao simples conceito estético, poderemos fazer crítica idealista, mas nunca uma critica cientifica.

É preciso ir mais longe, isto é, conhecer o criador da obra de arte, seus múltiplos aspectos e portanto as suas iniciais origens.

Desta forma a análise literária identifica-nos o autor com o meio donde provém. É o caso de Gil Vicente. Outras vezes é a biografia do escritor que nos dá a chave para a interpretação da sua obra; é o caso de Bernardim R.ibeiro.

Mas o sr. Dr. Costa Pimpão não quere ir tam longe, dizendo que "o determinismo do ambiente não é aqui de evocar, e por uma razão: é que a utilização das Beiras - como já tive ocasião de frisar no meu trabalho citado - não tem nada de lisonjeiro para esta província".

É uma afirmação sem fundamento que mais adiante apreciaremos.

Há um facto que eu quero já notar a absoluta contradição em que o ilustre Professor cai, quando afirma que só sob o ponto de vista estético lhe merece atenção a obra vicentista e não sob o ponto de vista biográfico, pois é-lhe indiferente que Gil Vicente seja da Beira, do Minho ou do Alentejo.

Sendo-lhe assim indiferente a solução do probema que eu me propuz tratar, porque razão tanto se preocupa em diminuir e quási querer pulverizar tôda a argumentação atinente a demonstrar a naturalidade heirã de Gil Vicente?

Mas tal não acontece, pois quem ler o seu artigo e os comentários que sôbre êste ponto bordou na Tragicomédis pastoril da Serra da Estrêla não pode deixar de concluir que o problema da naturalidade de Gil Vicente não o preocupa pouco mas muito...

Singular contradição que me leva, sem querer ser desprimoroso, a repeitr a cálebre frase de Horácio - quandoque bonus dormitat Homerus -.

2) Vejamos agora o valor da afirmativa de que Gil Vicente nenhuma simpatia tinha pela província da Beira.

Vamos demonstrar o contrário, começando pela análise dos argumentos aduzidos pelo ilustre Professor. Mas, antes de o fazer, eu não quero deixar de afirmar o direito que o escritor sempre teve pela história fóra, de recorrer ao epigrama, à sátira e a oatros processos de crítica no propósito de pôr em destaque os defeitos ou vicios dos seus conterrâneos. A naturalidade não importa renúncia nem limitação das facuIclades críticas do escritor.

Precisamente o conhecimento da região fornece ao artista mais ahundante e melhor material para a criação das suas personagens.

Já no teatro grego, o comediógrafo crivava de ironias 0s seus patricios de Atenas, não escapando o próprio Sócrates. Que diremos de Plauto, satirizando a sociedade romana!

A Idade-Média documenta duma forma inequívoca o direito que o escritor tinha de trazer para o palco todos os tipos grotescos, ainda que êles fôssem da sua provinda ou cidade natal.

Assim acontece com um dos fundadores da com:édia francêsa, Adam de La Halle que, a-pesar de ser da cidade de Arras, não deixou de crivar de ironias os seuS conterrâneos. Donde advieram a Molière os seus sofrimentos morais, senão daqueles parisienses que se viram visados pelo seu teatro?

Não se pode admitir a ideia de que o caracter de Gil Vicente fôsse diminuido pelo facto de ridicularizar a Beira, o que não é verdade, e engrandecido o de Sá de Miranda por tomar a defesa de Coimbra, em virtude dos desprezos que certos cortezãos por ela sentiam.

Creio que Sá de Miranda, ao escrever essa Carta não fazia teatro, mas, sim,praticava um acto de desafronta pessoal.

O paralelo,pois,é sôbre todos os pontos de vista inadmissível.

Que argumentos apresenta o sr. Dr. Costa Pimpão para nos mostrar a nenhuma simpatia que Gil Vicente sentia pela Beira? Temos de recorrer para isso não só ao seu artigo que estamos analizando mas também aos comentários da sua Tragicomédia pastoril da Serra da Estrêla.

O sr. Dr. Costa Pimpão diz que Gil Vicente se serviu de linguagem estranha ao trazer à côrte pela primeira vez, as graças dos pastores, não começando pela encenação dos costumes dos seus co-naturais, e acrescenta: "isto não é negar a sua origem beirã; é, simplesmente, opor uma dificuldade aos partidários dessa origem."

Os factos apontados são de tam fácil explicação que de forma alguma dêles se podem tirar os efeitos que o sr. Dr. Costa Pimpão pretende.

Pela mão de D. Leonor, viuva de D. João II, de quem Gil Vicente era ourives lavrante, foi êle introduzido na côrte a fim de representar o seu primeiro auto perante a Rainha D. Maria, mulher de D. Manuel, na ocasião do nascimento do príncipe que mais tarde deveria ser D. João III.

Por que razão o fez em língua estranha? Ouçamos o que a tal respeito diz o sr. dr. Queiroz Velozo. na História da Literatura Portuguêsa de Forjaz de Sampaio, pág. 29, vol. II.: "Em homenagem a esta rainha e para que ela bem o entendesse pois estava em Portugal há pouco mais de um ano e meio, foi o auto escrito, em castelhano, linguagem tam usada então no paço mercê dos sucessivos casamentos dos nossos príncipes com filhas dos reis católicos que no Cancioneiro Geral de Garcia de Rezende, trinta e seis poetas portugueses se serviram dêste idioma."

O uso da linguagem espanhola e assim o bilinguismo tornou-se corrente entre os nossos escritores, sem contudo os desnacionalizar.

Gil Vicente, servindo-se pois do castelhano, fê-lo pela necessidade de se tornar compreensivel não só pela raínha, mas tamhém pela comitiva que com ela veio para Portugal.

Fala-nos o sr. Dr. Costa Pimpão na encenação dos costumes.

Eu não sei bem qual o significado que deva atribuir a tal expressão.

Se se pretende com ela aludir, como parece, ao Auto da Visitação não reflectir os costumes da Beira e não ser o espelho da sua própria etnografia, eu creio que o reparo não é de admitir, pois contra êle protesta a essência da peça.

Poder-se-há dizer que o monólogo dêste auto foi escrito sob a influência de Juan del Ensina, mas o resto da peça reveste modalidades distintas, que sem esforço, podemos integrar na vida pastoril da nossa região.

Com efeito Gil Vicente, encarnando a figura do vaqueiro, vem acompanhado de trinta pastores que oferecem à raínha presentes fundamentalmente regionais, como são ovos, leite e mel.

A figura principal da peça, que é o vaqueiro, foi sempre considerada, como representando um pastor da Beira.

Assim o entende Simões Dias, na Literatura Portuguêsa, a pág. 165, dizendo: "Gil Vicente representou de vaqueiro da Beira no quarto da rainha para a distrair".

Pelo exposto verifica-se que tais dificuldades se transformam em mais uma prova a favor da naturalidade beirã.

sábado, julho 02, 2005

Gil Vicente, beirão (1/4)

por Valentim da Silva
in "Beira Alta", volume III, fascículo II, 1944, 2º trimestre

O ilustre professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. sr. Dr. Costa Pimpão, houve por hem publicar em separata um artigo que foi inserido na revista Biblos e em que pretende destruir e quási reduzir a pó a tese que na Beira Alta sustentei sôbre a naturalidade do fundador do teatro português.

Passado algum tempo, depois da publicação do meu estudo, eu soube que o ilustre Professor escrevia para Chãs de Tavares a pedir informações sôbre a existência dos topónimos por mim empregados e em que alicercei as minhas afirmativas. Em uma das vezes, segundo me informaram, o pedido era feito com muita instância, acrescentando que, caso não recebesse as informações que desejava, ver-se-ia obrigado a vir de longada, até esta região da Beira.

Êstes propósitos do sr. Dr. Costa Pimpão impressionaram-me muito agradàvelmente, visto serem reveladores não só do interêsse que lhe mereceu o meu estudo, mas mais ainda da incerteza em que ficaram colocados os comentários que fez à Tragicomédia pastoril da Serra da Estrêla, na parte referente à naturalidade de Gil Vicente.

Quando publiquei o meu estudo na revista Beira Alta, eu não tinha conhecimento das eruditas notas do sr. Dr. Costa Pimpão, acumuladas em tôrno da Tragicomédia pastoril da Serra da Estrêla. Se as conhecera, não deixaria de a elas aludir na intenção de lhe significar o meu desacôrdo em relação, evidentemente, ao caso da naturalidade do dramaturgo. Só mais tarde, é que o livro me veio de Coimbra e assim não a tempo de as refutar.

Felizmente a separata da Biblos dá-me agora ensejo para o fazer e assim demonstrar quanto é vão e inâne o esfôrço empregado no sentido de negar, ou pelo menos pôr em dúvida, a afirmação de que Gil Vicente era da província da Beira.

É certo que não foi o meu estudo que deu origem à sua réplica, mas, sim, as aceradas ironias que lhe dirigiu o distinto director da revista da Beira Alta. Foi isso que, como o sr. Dr. Costa Pimpão confessa, o moveu a vir à disputa.

Só tenho que me felicitar peja benéfica intervenção do sr. dr. Alexandre de Lucena Vale, que, levando aquele ilustre Professor à réplica, me vai permitir mais uma vez pôr em destaque, não por um subjectivismo bairrista, mas pelo estudo objectivo da obra de Gil Vicente, a veracidade da minha tese.

Não é, porém, o comentário cheio de graça e ironia do sr. dr. Lucena Vale que está em causa; o que está em causa é o meu estudo que constitue o objecto principal da crítica do sr. Dr. Costa Pimpão.

Podemos dividi-la para melhor clareza e lógica interpretação em duas partes. A primeira é aquela que mais me interessa por dizer respeito à exactidão dos topónimos empregados por Gil Vicente e por mim identificados com alguns lugares da freguesia de Chãs de Tavares; a segunda terá por fim demonstrar o nenhum valor dos argumentos opostos à tese que defendemos.

Vejamos a primeira:

O sr. Dr. Costa Pimpão começa por afirmar que eu, servindo-me de «argumentos um tanto requentados, não deixo, porém, de o fazer com precisões mas que o são só na aparencia, cometendo erros de facto e que, acusando-me destas minhas faltas, o faz com pezar».

Antes de entrar na análise destas acusações, eu quero por minha vez, formular tamhém o meu libelo contra o sr. Dr. Costa Pimpão por alterar coisas que eu disse e atribuir-me outras que eu não disse, e faço-o também com pezar. Como se vê ambos somos pessoas dotadas de bons sentimentos...

O primeiro topónimo que vem à baila é - Pena Furada - que eu identifiquei com - Pedra Furada - visto a sinonimia dos vocábulos, pois se pena queria significar pedra e, se na evolução da língua muitos termos desapareceram para dar lugar a outros de equivalência verbal, não deveria haver dúvida sôbre a identificação do lugar.

O sr. dr. Costa Pimpão acha, porém, difícil de aceitar a mudança de pena em pedra. Se atendermos à origem céltica do vocábulo - penn - veremos que dela advém - penedo - e, sem dificuldade, compreendemos a transição para - pedra. Sempre em Portugal tal vocábulo, mesmo de origem latina - paena - teve o mesmo significado de penedo ou pedra.

Já no Livro de Linhagens aquele "Dom Diego Lopez ouuyo contar muyta alta voz huuma molher em çyma de huuma pena."

Passemos ao das Corigas. Eu não afirmei que existisse hoje na toponímia local a expressão - Vale das Corigas mas, sim, Vale das Corgas. Identifiquei um com o outro, admitindo a síncope do - i - e assim a alteração fonética do termo - Corigas.

Se o sr. Dr. Costa Pimpão me objectasse que o - i ¬ sendo tónico, não poderia cair, eu teria de explicar a alteração fonética com algumas excepções, mas tal não fez, limitando-se a incluir na minha toponimia o vocábulo - Coriga, como se, de facto êle hoje existisse.

Não se esqueça o que no meu estudo afirmei àcerca das alterações a que estão sujeitos os nomes toponímia rural. Vou repetir o que então disse:

É preciso notar que Gil Vicente escreveu, já lá vão quatro séculos, e que em tam longo período a toponímia rural, naturalmente sujeita às leis da morfologia e fonética, se alterou senão no radical pelo menos na sua parte terminal.

Também se me atribue a afirmação da existência de - Vale de Penados. Tal não é verdade. Muito expressamente eu disse que tinha encontrado - Vale de Penedos e não - Vale de Penados. Não me pode pois ser atribuida a designação dum nome não identificado.

Passaremos agora ao Monte dos Três Caminhos.

Começa o sr. Dr. Costa Pimpão por dizer que nenhum dos seus informadores conseguiu achar rasto do Monte dos Três Caminhos, mas que, «no entanto, um dêles, julgou, por vagas informações recebidas, poder identificar tal local com um terreno cultivado, onde há vinhas, situado a nordeste de Matados, e hoje conhecido por Péguinhos e Paço Mourão

Felizmente os informadores do sr. Dr. Costa Pimpão lá foram dar com o sitio denominado Monte dos Três Caminhos, hoje cultivado de vinhas.

Foi o que eu afirmei no meu estudo, dando também por cultivado aquêle local. Conserva actualmente tal terreno a velha designação de Monte dos Três Caminhos se bem que nenhum já exista.

As alterações que a propriedade privada sofre através dos tempos, trazem consigo a mudança das vias de comunicação rural para outros lugares, ficando as extintas encorporadas na propriedade particular.

A designação do Monte dos Três Caminhos é tam antiga que ainda hoje se conserva apesar de por lá não passar caminho algum.

Confessa o meu ilustre opositor que, de facto, existe um Vale de João Viseu, mas acrescenta que «duvida da sua antiguidade» e isto, porque lá reside uma família com o apelido Viseu.

O que se deveria ter averiguado é se essa família tomou o nome de Viseu por ir habitar um local assim designado ou se aí se propagou através dos séculos. O sr. Dr. Costa Pimpão levanta a dúvida sem nenhuma razão de ser, pois o meu informador (eu também tenho informador que vai para além dos 80) afirma que conhece de visu tôda a freguesia das Chãs e sempre desde tempos imemoriais ouviu designar aquele local pelo nome de Vale de João Viseu.

O facto concreto e real é êste: Gil Vicente faz assobiar Mofina Mendes no Vale de João Viseu.

Não vale a pena insistir.

Alqueidão foi por mim identificado com - Aljão e vem agora o sr. Dr. Costa Pimpão falar-me em Alfão. Isto nos basta para não insistir nêste topónimo.

Segue-se agora o célebre Vale do Covelo, e célebre lhe chamo por muitas vezes aparecer na obra do comediógrafo. De facto, a expressão usada por Gil Vicente é - Vale de Cobelo - e não Vale de Covelo, mas não faça dúvida a diferença entre os dois nomes, pois na passagem do português arcaico para o moderno o - b - brando transformou-se em - v - brando. É uma regra fonética com algumas excepções, é certo, mas que não admite dúvidas. O professor Dr. José Joaquim Nunes, na sua Crestomatia Arcaica, LXVI, da introdução, assim o afirma, dizendo «b medial permuta com a continua branda correspondente v.»

Portanto era natural e lógico que Gil Vicente dissesse - Cobelo - e que na linguagem moderna se diga - Covelo.

O topónimo - Vilarinho - mereceu ao sr. Dr. Costa Pimpão o reparo de ser um nome vulgar em Portugal. Será, não digo que não, mas o caso é que êle foi empregado por Gil Vicente e também se encontra localisado na freguesia das Chãs. E aqui está a crítica feita aos topónimos espalhados entre as povoações da freguesia de Chãs de Tavares e que constituem, no dizer do ilustre Professor, um magro pecúlio por mim forrageado nos autos de Gil Vicente..

O pecúlio será magro de facto, e nem eu tive a preocupação de fazer um trabalho exaustivo sôbre a toponímia vicentista, mas colhido dentro duma freguesia perdida entre montes e vales ignorados, creio que é sufientemente elucidativo para o fim que temos em vista.

Os argumentos opostos pelo sr. Dr. Costa Pimpão no intuito de fazer vêr que na obra vicentista se encontram especificados muitos outros nomes, além daqueles que eu indiquei, não destroi de forma alguma nem sequer diminue a real importância da toponímia de Chãs de Tavares.

O que dá valor aos topónimos por mim invocados senão o facto de todos estarem próximos uns dos outros e assim localizados na mesma freguesia?

Qual a área administrativa que, em conjunto contenha mais topónimos referidos por Gil Vicente, do que a freguesia de Chãs de Tavares?

O que impõe veracidade à minha tese, sob o ponto de vista toponímico, não são referências singulares e isoladas, mas um conjunto de nomes rurais agrupados num espaço
de diminuta extensão.

Apesar do exposto, vamos acompanhar o sr. Dr. Costa Pimpão pelas povoações onde êle andou, também, forrageando elementos que destruissem as minhas asserções. Na Tragicomédia pastoril da Serra da Estrêla indica os versos:

Afonso Vaz
em fronteira e Maçarraz,
como vai o trigo lá?


e logo conclue que um alentejano deveria julgar Gil Vicente natural dessa província...

Creio que, em boa lógica, tal pregunta nunca poderia levar-nos a essa dedução. Seria o caso de alguém que não conhecendo a naturalidade do sr. Dr. Costa Pimpão, ao ouvi-lo informar-se dos trigos do Alentejo, ficasse convencido de que o ilustre professor era daí natural...

Não! A referência a Monsaraz é um caso singular, como tantos outros, espalhados pela obra de Gil Vicente.

Fala-nos na Farsa dos Almocreves para nos apontar as várias localidades por onde Pero Vaz andou com os seus mus. Êste Pero Vaz, note-se, era de perto de Viseu, o que mostra mais uma vez a preferência de Gil V icente por êstes recantos beirões.

Pois, sendo êle almocreve não deveria andar assim por muitos e variados lugares no cumprimento dos fretes 4ue tinha de executar?

A que propósito vem pois para a nossa tese o facto do almocreve dormir num lugar, ao outro dia seguir para outro, e assim seguidamente?

Um almocreve nunca foi um sedentário e era natural que percorresse montes e vales, visto ser, naqueles recuados tempos, o único meio de ligação entre as diversas províncias. Tipo curioso daqueles tempos e que, por muitos séculos, existiu na nossa província, cuja pintura magnífica foi pincelada com mestria no "Malhadinhas" de Aquilino Ribeiro.

Falta para concluir o estudo da toponímia, invocada pelo sr. Dr. Costa Pimpão, fazer referência a um artigo do sr. dr. António Dias, publicado no "Diário de Coimbra".

No concelho de Seia há dois topónimos iguais aos da freguesia de Chãs de Tavares -Pedra Furada e Covelo. Podem êles identificar-se com os empregados na obra vicentista? Creio que não.

Pedra Furada não está fronteira à Virgem da Estrêla como em Chãs, condição indispensável para a identificação ser completa, mas sim, na freguesia de Santiago. Nunca o penhasco que está fronteiro à ermida da Nossa Senhora da Estrêla foi conhecido por tal designação.

Também Covelo do concelho de Seia não se pode identificar com o topónimo de Chãs de Tavares, pois nesta freguesia a expressão usada é - Vale de Covelo - e é esta precisamente a que Gil Vicente empregou. Portanto Covelo e Vale do Covelo são diferentes, não havendo necessidade, por exigência métrica, de antepôr a Covelo o vocábulo - Vale.

E é tudo 4ue o sr. Dr. Costa Pimpão contrapõe aos topónimos da freguesia de Chãs de Tavares.

Com um pouco de boa vontade teríamos Gil Vicente natural de Seia, diz êle, com velada ironia... Se assim fôssse, nem por isso deixaria de seI beirão, facto que o ilustre Professor nega ou pelo menos põe em dúvida, pretendendo desprendê-lo da província a que pertence.
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