domingo, junho 19, 2005

O castelo de Mangualde e a cidade de Viseu

por Valentim da Silva
in "Beira Alta", volume I, fascículo III, 1942, 3º trimestre


Quem quizer escrever a história da Península Ibérica, desde a sua primitiva organização social, levando êsse estudo até ao conturbado período da Idade-Média, não pode deixar de pôr em relêvo e assim de assinalar o alto significado que, naquelas remotas épocas, tiveram tôdas as construções militares, não só sob o ponto de vista do fim a que eram destinadas, mas também pelas conseqüências políticas que delas derivaram.

Como que dentro das suas muralhas, da cinta das suas graniticas paredes, os homens mais se prendiam e se ligavam na mesma constante aspiração que, outra coisa não era senão o predomínio da sua raça e mais ainda da expansão da sua própria crença.

Revestissem elas a forma dos primitivos castros lusitanos ou tomassem a aspereza dos opidos romanos, fõssem aqueles agigantados castelos do período gótico tivessem mesmo aquela ligeireza da construção imposta pela rapidez da defeza do terreno conquistado - sine calcis linimento ex minutis lapidibus trabibus interpositis - ou finalmente formassem mais tarde em plena Idade-Média, uma completa e harmónica cidadela militar, rodeada de graníticas e largas muralhas em que os adarves constituiam por si vastos miradouros e onde as albarrãs e cubelos imergiam quási sempre dos seus ângulos, como se fôssem os olhos das próprias atalaias ou tivessem ao centro as suas tôrres de menagem, como águias altaneiras, dominando todo o espaço que lhe ficava envolta, cercadas de profundos fossos, tendo por única comunicação as pontes levadiças, tôdas estas construções, enfim, disseminadas a maior parte pelo norte de Portugal, constituiram sempre páginas dum glorioso passado, monumentos da mais palpitante realidade.

Com razão João Grave no seu estudo sôbre Castelos de Portugal afirma:

"Espalhados há centúrias por tôda a terra portuguesa, como se tentassem defendê-la ainda contra surtidas de sarracenos ou invasão de exércitos europeus, os castelos de Portugal são dos nossos mais sugestivos monumentos.

Por êles que foram sustentáculos duma independência conquistada a ferro e fogo e vedetas permanentemente vigilantes da segurança do terriiório poderemos nós evocar as eras findas, reconstituindo-as, atravez da lição destas cidadelas, tão características duma época, em pinturas animadas e vivas; por êles será possível aos espíritos sensíveis conviver, por momentos, com as veneráveis gerações de homens intrépidos que amavam a sua pátria livre acima de tudo e que por ela se sacrificavam sem desmaios de coragem, quando era preciso expulsar o invasor do chão que lhe pertencia ou dilatar mais as fronteiras do reino.


Não são apenas documentos importantes para a etnografia. para a arqueologia, para a antropologia; são também vivos e intensos capítulos em pedra, dos Anais de Portugal.

Todos têem a sua história. Em todos êles se combateu com bravura, em horas de entusiasmo e de exaltação patriótica e mística no alarido das acometidas furiosas.


Todos são poetizados por lendas de heroísmo e de devoção a uma idéa e a uma fé que lhes comunicam beleza.


Foi entre as suas grossas paredes de granito que se fortificou o princípio da nacionalidade e se intensificou o amor da autonomia."

Os castelos representaram, pois, na formação e constituição da nossa nacionalidade um dos elemenlos mais poderosos de que se serviram os primeiros batalhadores portugueses na elevada missão que a Providência lhes destinou.

Estudar o papel que os castelos de Portugal desempenharam durante a Idade-Média é como folhear os primeiros Anais da nossa História.

Cada pedra, cada pano de muralha, cada porta chapeada de pesadas ferragens, cada paterna aberta às guarnições vencidas, cada tôrre de menagem, como último reduto das heroicas resistências, cada assalto, cada escalada que o pez, o azeite a ferver, os pedregulhos, lançados dos adarves, continham em respeito, cada vaga de mortíferas flechas, assobiando pelas fisgas das olongadas seteiras, todo êsse infernal clamor firmado na fôrça indomável da própria glória, ressurgem aos nossos olhos como visões dum passado extinto que, se mais nos enchem de espanto, mais nos avigoram o valor da nossa intrépida ascendência.

Tôdas estas fortalezas militares têem por isso, a sua história, ora cheia de triunfo e glória, ora cheia de desalento e derrota.

Cada uma foi cenário de épicos feitos ou de trágicas e dolorosas agonias.

Por mais obscuras que elas fôssem, nunca adentro das suas pedras deixaram os seus defensores de sentir, de viver grandes momentos de ansiedade e terror.

Recordar a vida dêsses castelos, as tradições que os cercam, tôdas as lendas que os enaltecem, é contribuir, sem dúvida, para o alargamento do património da nossa História.

Levados por êste patriótico propósito, vamos recolher, nêste singelo trabalho, o que a história e a tradição guardaram acerca do castelo de Mangualde e, ainda mais, o interêsse que a cidade de Viseu por longos séculos patenteou pela capitulação da sua guarnição mussulmana.

A dois quilómetros da vila de Mangualde, eleva-se um altaneiro monte onde hoje assenta uma formosa ermida e onde outrora se erguia um roqueiro castelo de dentadas ameias.

Falar dêste castelo é comemorar um passado longinquo, como é o da reconquista cristã que trouxe a expulsão dos mouros da península e que aqui teve também a sua hora de luta, a sua hora sangrenta de combate, travada entre as hostes cristãs e as guarnições militares sarracenas.

Sôbre as escarpas dêsse altaneiro monte e onde assenta a actual ermida, erguia-se outrora uma poderosa fortaleza, conhecida pelo nome de castelo de Azurara.

O tempo e os homens, nas suas inclementes alterações o arruinaram e acabaram por destruir.

Dele nos restam apenas as poucas pedras que, ainda alinhadas, se encontram detraz da mesma ermida.

Contudo, êle foi e representou nos primeiros séculos da reconquista, um valoroso baluarte para quem dêle estivesse de posse.

Subindo à tôrre da ermida, os horisontes que dai se avistam, abrem-se na mais larga vastidão em que se descobre todo o alteroso território da Beira.

Do sul, vindo das terras de Espanha, tôda a altiva cordilheira da Estrela, austeramente dominadora, como se fôra o braço forte dum ciclópico gigante e que, entre abruptas ravinas, se vai perdendo, misturando com os primeiros contrafortes da serra da Lousã.

Ao poente, desdobram-se as encostas do Buçaco, ainda hoje para a nossa alma de portugueses, palpitando das mais gloriosas tradições.

Ainda a poente, os primeiros píncaros do Caramulo, alargando-se em círculos concêntricos, sobrepondo-se a todos êles, o miradouro do Caramulinho, e, se a vista no-lo consente, mais longe, para além dêle, a faixa branca do mar, bordando as costas da Beira Litoral.

Depois, caminhando para o norte, mais o circulo se alarga entre as negras serranias do Montemuro e Gralheira, que, a perder de vista, se alongam até às distantes terras do Douro.

A nascente, as terras da Beira Baixa, quási que a chocarem-se com as balizas que as separam da Espanha.

Sobrepondo-se a êste vasto panorama, o castelo de Mangualde constituia, sôbre o ponto de vista militar, o mais estratégico e o mais valoroso elemento da defesa de tôda a região.

Na linha de cintura de fortalezas com que a Beira se defendia, então existentes, êle, pela sua situação geográfica, impunha-se a tôdas, como a primeira sentinela das terras da Beira Alta.

Se os castelos de Trancoso, Celorico e Linhares constituiam, nas primeiras horas da história peninsular, as guardas avançadas contra as invasões que viessem do nascente, o castelo de Mangualde não deixaria de ser para a Beira o mais poderoso reduto que cobrisse tôda a vastidão dos seus terrenos.

De facto, tôda a nossa província encontraria nêle a melhor defesa militar, apoiada ao sul pelo castelo de Seia, a poente pelo de Viseu e Lafões e ao norte pelo de Penalva.

A todos, porém, pela sua superior situação, se anteponha o de Mangualde e o facto que adiante narraremos o comprova duma forma clara e terminante.

Quando foi construído o castelo de Mangualde ? De que data é a sua fundação? Dizem-no do tempo dos mouros e assim no-lo afirma o vigário da freguesia de Mangualde, padre José Rebelo de Mesquita, pois em 1757, referindo-se a êle diz o seguinte:

"Há na minha freguesia uma serra chamada do castelo cujo nome alcançou de ser antigamente castelo de mouros, como consta de vestígios que nela se acham, que vem a ser uns muros muito antigos e que hoje se encontram arruinados e postos por terra, feitos e maquinados de pedra meúda unida com cal e areia de que ainda existem sinais e, se diz, foram fabricados por um mouro, Azurão, do qual tomou o nome êste concelho de Azurara."

Creio que não está certa a afirmação do vigário de Mangualde, atribuindo aos muçulmanos a construção do castelo de Azurara.

Mais remota deveria ser a sua antiguidade. Os mouros apenas se limitaram, quando se apossaram da província da Beira, a expulsar dos castelos ou fortalezas os seus detentores, guarnecendo-as depois com as suas fôrças militares, e somos levados a esta conclusão por uma série de argumentos que muito fortalecem êste nosso pensar.

Em primeiro lugar, não há memória de que nenhum dos castelos da Beira fosse construído durante o período da dominação sarracena. Todos eles são muito anteriores a começar pelo de Seia e Viseu.

Em segundo lugar, quási todos eles são de origem anterior a esse domínio, por vezes, remontando ao período romano ou visigótico.

Em terceiro lugar não se compreende que até à invasão árabe êste priveligiado lugar que é o monte do Castelo de Mangualde não tivesse sido aproveitado para base da defeza desta região.

Em quarto lugar, porque, tendo-se encontrado no sopé desta montanha, princípalmente nos sítios denominados Fonte do Pucaro e Raposeiras, vestígios duma povoação luso-romana, evidentemente que um castelo a deveria proteger com as suas muralhas contra os inesperados ataques dos invasores.

E em quinto lugar, porque numa das pedras que nos restam dêste castelo está gravado um símbolo fálico que, evidentemente, não era usado pelos árabes nas suas construções, mas sim pelos romanos e até pelos gôdos antes de abraçarem o cristianismo. O símbolo gravado naquela pedra é de tal importância que não nos repugna fazer o castelo de Mangualde coevo da época romana ou, se quizerem, da formação da monarquia gótica.

A invasão árabe na península dá-se no ano 711.

No século oitavo, já, pois o castelo de Mangualde deveria ter passado para as mãos dos sarracenos, seguindo assim a sorte de todos os outros.

Se a população da Beira, como afirma Herculano, continuou a conservar-se dentro dos seus costumes, da sua organização social, praticando a religião cristã, como fazia até à invasão, limitando-se a pagar ao governador alcaide ou vazir os tributos que lhe foram impostos, entrando assim na categoria das populações mosarabes, o mesmo não aconteceu aos castelos e fortalezas que foram ocupadas pelos respectivos alcaides mussulmanos.

Assim aconteceu ao castelo de Mangualde que, segundo uma tradição nunca interrompida, teve por alcaide um mouro de nomo Zurara e que por corrupção popular veio a designar-se por o nome de Zurão donde mais tarde derivcu o nome deste concelho.

Zurara foi, pois, o alcaide árabe que até à reconquista neste castelo representou o poder central, ou seja, dos emires de Espanha.

Esboçadas as primeiras tentativas da reconquista pelos reis asturoleoneses, os mouros vão cedendo sob a pressão das armas cristãs os territórios que, desde o século VIII, tinham ocupado.

Não vem agora a propósito fazer a larga narração dêsses sangrentos acontecimentos que, desde Afonso I se desenrolaram no território que mais tarde formaria Portugal.

O que nos interessa no presente momento é frisar, focar o alto relevo que o castelo de Mangualde desempenhou nas lutas da reconquista e que, no dizer de Herculano, ensanguentaram os distritos da Beira Alta, por mais de sessenta anos.

Até que Fernando Magno estabelecesse definitivamente o domínio cristão para além do Mondego, incessantes combates se travaram ora com sucesso para as armas cristãs, ora oom sucesso para as armas muçulmanas, neste território da Beira.

O castelo de Mangualde, pela posição militar que lhe assinalámos, era sem dúvida um perigo iminente para as populações que lhe ficavam a poente.

Viseu que tantas vezes foi tomado e retomado ora por mouros, ora por cristãos, tendo até o rei Afonso V num dêsses assédios, ai encontrado a morte, considerava sempre por isso, como perigo iminente para a sua defesa a posse do castelo de Mangualde, nas mãos dos sarracenos.

Era natural e lógico êsse perigo, atenta a situação geográfica desta fortaleza. A mais natural estratégia impunha a sua destruição.

Concertadas as hostes cristãs de Linhares, povoação que é situada nos contrafortes da Serra da Estrêla e fica a sudoeste desta vila, logo o ataque se deu ao castelo de Mangualde duma forma impetuosa a ponto da guarnição muçulmana cair para sempre nas mãos dos seus adversários.

O castelo foi tomado, dizem, incendiado, quâsi destruido.

Foi um grande alivio para Viseu, um grande sossêgo para tôdas as populações cristãs que lhe ficavam a poente.

Linhares que tinha prestado o seu concurso militar, pois estava já na posse dum governador cristão, muito concorreu para a eficácia dêste histórico feito.

É interessante pôr em relêvo a lenda que se bordou em volta da tomada dêste castelo e que Frei Agostínho de Santa Maria, no seu livro "Santuário Mariano" narra da seguinte forma:

Que êle foi incendiado, quando o seu alcaide Zurão se encontrava no castelo de Linhares e para onde tinha sido traiçoeiramente convidado e que o mesmo mouro morrera de tristeza e de dôr, observando, de Linhares, o incêndio do seu castelo.

Mesmo que o alcaide estivesse ausente e que traiçoeiramente tivesse sido chamado a Linhares, isso não deixava de implicar a aguerrida luta que se deveria ter travado entre a fôrça militar que o guarnecia e os assaltantes que o tomaram.

Esta montanha de rochosas escarpas de negras e graníticas penedias deveria ter sido nesse momento teatro da mais sanguinolenta batalha.

A nota sentimental do mouro, a morrer de pena de ver o seu castelo ao longe envolto em chamas, poderia fabular uma das mais lendárias novelas mediévicas, que tão comuns são a êste período conturbado dos mais bárbaros sentimentos.

Desligada a verdade histórica da lenda, não se pode admitir a tomada do castelo sem renhida contenda, tão importante êle era para quem dêle estivesse de posse.

Em que data é que os cristãos tomaram o castelo de Mangualde ?

Temos para nós que a queda do castelo de Azurara se deveria ter dado antes da acção definitiva de Fernando I, levando de vencida os mouros para além do sul do Mondego, e somos levados a isso pelo reconhecimento que a cidade de Viseu manifestou durante longos séculos, pela destruição do castelo de Azurara que constituia, como já por mais de uma vez assinalámos, pela sua situação estratégica um ponto militar de grande importância e por isso uma ameaça constante para as populações cristãs que lhe ficavam em frente.

Se a tomada do castelo de Azurara fosse realizada no tempo de Fernando Magno, que, como dissémos, firmou o domínio cristão até ao sul do Mondego, não haveria razão para que Viseu manifestasse duma forma tão inequivoca, durante tão longos séculos, o seu reconhecimento pela tomada do castelo, reconhecimento que envolvia a população de Mangualde e a de Linhares na mesma simbólica saudação.

O castelo de Mangualde deveria ter pois caido durante as primeiras tentativas da reconquista da Beira que mais se acentuaram no tempo de Afonso V e do seu sucessor Bernardo III.

Quando Fernando Magno tomou Seia, Lamego, Viseu e Coimbra, já o castelo de Mangualde deveria ter caído nas mãos dos cristãos.

Vejamos agora a forma como Viseu expressou a Linhares o seu reconhecimento até começos do século XIX pela realização dêste facto histórico.

Rezam as crónicas que o senado da cidade de Viseu, na segunda oitava do Espírito Santo de cada ano, trazendo o seu estandarte e acompanhado de muito povo e alguns clérigos, vinha a Mangualde e, subindo ao lugar mais alto da montanha, prestava homenagem a Linhares, inclinando o seu estandarte para aquele castelo, em sinal de reconhecimento pelo auxílio prestado na tomada da fortaleza de Azurara.

Ouçamos como o vigário de Mangualde, padre José Rebelo de Mesquita, descreve êste voto que a Câmara de Viseu vinha todos os anos realizar a êste monte.

Assim escrevendo em 1758, referindo-se às romarias das ermidas dêste concelho, diz:

"Nenhuma destas ermidas tem romage senão a da Senhora do Castelo á qual vai em romaria o Senado da Camara de Viseu todos os anos em a segunda oitava do Espirito Santo e com ele vai um dos curas da mesma cidade e dois beneficiados, e levantam procissão junto á Igreja matriz desta vila e cantando o Te-Deum Laudamus continuam até á mesma igreja e finalizando o acto com a oração de S. Julião, a vão novamente continuar ao Calvario da Via-Sacra, que está no monte do Castelo, cantando a Ladainha até á ermida da mesma Senhora, e no fim dela se celebra uma missa cantada. Depois vão continuando a mema procissão até ao cume do mesmo monte onde sôbre um eminente penedo brandem o estandarte real. No fim de tudo isto recolhem-se a solenizar todo êste acto com um esplendido banquete que fazem á custa do mesmo Senado."

Após a festa religiosa, seguia-se, como se vê a cívica cerimónia de saudação a Linhares, o que outra coisa não era o brandir do estandarte da Câmara de Viseu, como reconhecimento do serviço militar prestado por Linhares e Mangualde.

Nem à festa faltava o esplêndido banquete pago pela cidade de Viseu.

Frei Agostinho de Santa Maria, na sua obra, Santuário Mariano, livro II, a esta cerimónia tambem alude, descrevendo-a da seguinte forma:

"A Câmara da cidade de Viseu vai todos os anos a visitar a Senhora a êste seu Santuario, e encorporada, em a segunda oitava do Espirito Santo, o que faz sempre com muitos festejos.

E costuma no lugar mais alto daquela casa da Sanhora arrastar ou dar algumas voltas com a bandeira da mesma Câmara, olhando para a vila de Linhares, a quem fazem êste obséquio em louvor, dizem, e memória de que esta vila fôra a que tomara êste castelo ao mouro Zurão.
"

Quere o estandarte da Câmara de Viseu fôsse brandido num eminente penedo, como se afirma no Dicionário do padre Cardoso, quere fôsse arrastado, dando-se com êle algumas voltas, quere como, a tradição nos conta, a Câmara o inclinasse três vezes para a vila de Linhares, a idea é sempre a mesma ainda que exposta sob forma diferente.

O objectivo do acto era saüdar Linhares por ter auxiliado a queda do castelo de Azurara, e para êsse fim se praticava a cerimónia da bandeira.

Quando é que êste voto começaria não o dizem os escritores antigos, mas estamos convencidos de que ele deveria ter o seu inicio logo nos primeiros tempos da formação de Portugal.

Festa religiosa e cívica, porque a nobilíssima cidade de Viseu, tão cheia já, então, de valorosos feitos e que representava naquelas épocas longínquas o núcleo maís importante das populações da Beira e que fôra até a capital da Galiza, patenteava assim o seu agradecimento no simbolismo daquele voto a todos os que lhe ajudaram a destruir o inimigo que tantas vezes lhe pusera em risco a segurança e tranqüilidade do seu território.

Festa da Bandeira lhe chamamos porque depois das cerimónias religiosas, subia-se ao píncaro mais alto desta montanha para saúdar Linhares, cujas torres de menagem, ainda hoje eminentemente sobranceiras, de lá nos evocam todo um passado distante de glória e luta em que se firmou e consolidou a nacionalidade portuguesa.

Depois, realizava-se, como diz o vigário de Mangualde, um esplêndido banquete, pago pelo Senado de Viseu. Quere dizer que o voto terminava sempre alegremente e na mais íntima confraternização entre a cidade de Viseu e a vila de Mangualde.

Nota interessante que bem significava o sentimento de estima que unia sempre as duas populações.

É tambem ainda interessante ouvir o que Costa Lobo, no seu livro História da Sociedade de Portugal do século XV, nos diz a respeito da Bandeira que o Senado de Viseu trazia ao Santuário da Senhora do Castelo e que nos comprova o cumprimento da mesma cerimónia no reinado de Afonso V.

"Em 1465 o atraso da cidade de Viseu era tal, que nos Paços do Concelho não havia o sino indispensável para convocar ou avisar os habitantes.

Nas côrtes dêsse ano o concelho pedia ao Rei, que suspendesse a isenção dos privilegiados para o pagamento duma finta, que ele ia lançar para a aquisição dum sino de correr, como havia nos paços das principais cidades e vilas do reino, e que era necessário para chamar a vereação e dar rebate em caso de arruído ou de fogo. Até então serviam-se dos sinos da Sé, mas agora o
bispo e o cabido não consentem, e os teem fechados.


O Rei deu o seu beneplácito.

A municipalidade procedia com acêrto em requerer licença prévia para esta derrama, porque dez anos antes, em 1455, cometera a imprudência de mandar vir de Flandres uma bandeira que lhe custara a soma, enorme para gente tão penuriosa, de mais de 4.800 reais, e só depois é que se lembrou de pedir autorização para lançar a respectiva talha.

Afonso V, que por conta própria era um delapidador dos bens da corôa, mas que neste caso se mostrou proporcionalmente severo para com os seus súbditos negou semelhante autorização, para que o povo não fosse avexado; se as pessoas privilegiadas quizessem pagar para a bandeira fizessem-no muito embora, de outro modo se pagaria pelas rendas do concelho nos anos sucessivos. A compra fôra evidentemente devida á influência das pessôas gradas do concelho. Gomo êste, quatro anos depois, solicitava do rei o donativo de um pendão, vê-se que a bandeira de Flandres era tida por demasiado preciosa para ser levada em romaria ao Santuário de Mangualde.
"

A bandeira que o Senado da Câmara de Viseu trazia à Senhora do Castelo no século XV não era, portanto, a que fôra encomendada em Flandres, mas sim uma outra de menos valor.

Para a aquisição desta bandeira, destinada ao referido voto, pediu, como se vê dêste historiador, o concelho de Viseu autorisação ao Rei Afonso V.

Isto nos basta para testemunho do voto que o Senado da Câmara de Viseu praticava durante longos anos.

Num dos livros da Câmara Municipal, do princípio do século XIX, verifica-se que Viseu vinha ainda nessa época cumprir o seu voto a esta serra e pena foi que tão cívica cerimónia acabasse por se obliterar, por desaparecer da memória das últimas gerações.

Eis o papel histórico que nas lutas da reconquista desempenhou o nosso castelo que, depois de tomado aos mouros, por muitos anos ainda existiu e que teve entre outros alcaides ilustres o glorioso descobridor do Brasil que foi Pedro Alvares Cabral.

Quando das Inquirições de D. Afonso III, em 1258, testemunhas aparecem apontando-o ainda existente. Por certo, as suas últimas muralhas acabaram de ser destruídas para no seu lugar se levantar em 1828 a 1855 a formosa ermida que hoje o substitue. A primitiva ermida ficava em baixo junto da casa do ermitão e cujos alicerces, cujas fundações ainda hoje se podem verificar.

As festas da Câmara de Viseu e as demais cerimónias religiosas realizavam-se nessa pequena capelinha que, primitivamente, Frei Agostinho de Santa Maria diz ter sido mesquita de mouros.

A pequena ermida no taboleiro inferior, o castelo no ponto mais alto da montanha, ficaram assim por longos séculos a testemunhar a rácica unidade nacional, cimentada entre o culto da religião e a força batalhadora dos nossos primitivos guerreiros mediévicos.

Santa Maria do Castelo lhe chamam os antigos documentos e assim deveria ser, pois, instituida naquela mesquita o culto cristão, era natural que aí fosse feita a invocaçào da Virgem sob a designação de Santa Maria do Castelo.

Tambem a Câmara de Castendo, as povoações do distante concelho do Sátão, tôdas as populações da freguesia de Povolide do concelho de Viseu, isto é, todos os habitantes dos lugares que ficavam sob o raio da acção do castelo de Azurara, aqui vinham, anualmente, por sua vez, prestar homenagem a Santa Maria do Castelo como reconhecimento de ter desaparecido do alto desta montanha o alfange do mouro que as avassalava e lhes impunha o seu despótico domínio.

Uma grande parte da Beira aqui trazia, pois, todos os anos, envolto nas preces religiosas, o cântico vitorioso da sua liberdade.

Eis o que a história e a tradição nos contam àcerca do Castelo de Mangualde, da sua tomada aos mouros e votos de gratidão que, por êsse facto, eram tributados pela Câmara de Viseu e de mais populações da Beira.

Mangualde

Valentim da Silva
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